desember 01, 2006

Arte musical

Trabalho de DJ’s gera discussão sobre direitos autorais
por João Henrique Fragoso
Recentemente um grande jornal do Rio de Janeiro publicou uma matéria acerca da atividade dos DJ’s. Embora dela lembre apenas alguns detalhes, permaneceu em minha mente uma questão ali abordada: podem os DJ’s ser considerados músicos?
A matéria, aparentemente, foi motivada pela criação no prestigiado Berklee College of Music de um curso de “turntablismo”, onde são ensinadas técnicas envolvendo todos os elementos de manipulação e performance de um DJ: scratch, beat-matching e beat juggling, crossfader, cuing etc. (todos estes termos e sua explicação técnica foram retirados de matéria publicada no The Boston Globe, www.bostonglobe.com).
No Brasil já existem cursos de formação de DJ’s; sites especializados -- além de sites dos próprios DJ`s -- comércio de equipamentos e discos vinyl, publicações e programas de rádio e tv voltados para o setor, e uma associação de classe, caracterizando uma atividade intensa na área, com um também intenso intercâmbio internacional, além da proliferação de grandes eventos envolvendo a categoria.
Segundo o glossário que acompanha a matéria do The Boston Globe, turntablism significa a arte de utilizar um toca-discos como um instrumento musical. Este modo de utilização não é novo: John Cage já o fizera há décadas, em fins dos anos de 1930, e desde então tem sido utilizado do mesmo modo em diversas manifestações musicais. Atribui-se, entretanto, ao DJ Babu ter cunhado o termo turntablism, em 1995, definindo o turntablist como a pessoa que usa o toca-discos, não para reproduzir músicas, mas para “manipular sons e criar música”. Há, ainda, a elaboração de um conceito: o de que o DJ apenas executa músicas e o turntablista cria músicas.
A International Turntablist Federation define o turntablista como alguém que usa o toca-discos como um meio para executar, mixar, criar e orquestrar novas e originais composições musicais, concluindo que, ao usar as mãos para mover o disco para frente e para trás, manipulando ritmicamente os sons, atua como um violinista, um guitarrista ou um pianista. Ressalte-se que uns dos objetivos da ITF é o reconhecimento internacional do turntablist como um músico, e do turntable como um instrumento musical.
A conjunção desses elementos de definição do que seja um turntablista, na verdade, do que seja um DJ -- já que a expressão turntablista inexiste entre nós -- resulta em dois aspectos a que se visa analisar, a saber: i) o DJ como intérprete musical; e ii) o DJ como autor musical.
Ressalto, antes, que a questão não deveria passar por preconceitos de qualquer tipo, assim como aspectos de natureza estética devam ser afastados, uma vez que o objetivo é a avaliação fática e a tentativa de caracterização jurídica do fenômeno.
O DJ como intérprete musical
À parte o fato de ser o ou a DJ uma personalidade inserida no mundo artístico musical, basicamente da música popular, a questão é se a sua atividade pode ser interpretada como uma atividade de artista, em termos estritamente legais, e que tipo de artista é. A Lei nº 6.533/78 define o artista como todo o profissional que cria, interpreta ou executa obra de caráter cultural de qualquer natureza, através dos meios de comunicação de massa ou em locais onde se realizem espetáculos de diversão pública.
A Convenção de Roma (1961) da qual o Brasil é signatário, já estabelecera que se entende por artistas intérpretes ou executantes, entre outros, os músicos que interpretem ou executem obras literárias ou artísticas, entre estas últimas, as obras musicais. A Lei nº 9.610/98 (Lei autoral) absorveu o conceito da Convenção para a definição de artistas intérpretes ou executantes. A Lei n.º 3.857/60, que disciplina o exercício da profissão de músico não o define, apenas estabelece uma classificação de músicos, na qual encontram-se os compositores, os instrumentistas e arranjadores.
Independentemente do fato de estar o DJ enquadrado em qualquer das categorias acima, entendo que -- parafraseando Walter Moraes (in “Artistas, Intérpretes e Executantes”, Ed. RT, São Paulo, 1976) o músico é um “agente da arte musical” -- seja ele um compositor, um intérprete ou um arranjador, ou um DJ, completo. Como um agente dessa arte, sobre ela exerce algum tipo de intervenção. No caso específico do músico-intérprete ou executante, esta intervenção é mediada por um instrumento musical qualquer, sejam cordas, percussão, metais, madeiras ou a própria voz.
O objeto de minha dúvida, então, divide-se em dois: i) se um toca-discos e todo o conjunto de aparatos utilizado por um DJ (CD player, mixer, sampler, processadores de efeitos, computadores etc.) constitui um instrumento e; ii) em sendo um instrumento, qual a natureza da intervenção exercida pelo DJ.
É possível responder às indagações com base em meras observações: se existe uma obra pré-gravada, executada por meios eletro-mecânicos pelo toca-discos, e sobre cuja execução o DJ exerce uma intervenção, manipulando e ainda alterando a gravação original, de modo a produzir um novo som, certamente o toca-discos transforma-se em um instrumento musical e o seu manipulador em um intérprete (ou executante) musical.
Exemplos de manipulação por um indivíduo, de sons pré-gravados, justificam esta consideração, especialmente na chamada música concreta, que desde a década de 1940, com compositores como Pierre Schaeffer (França), desenvolveram o conceito de música concreta como o resultado de sons pré-gravados por instrumentos convencionais ou sons naturais e que depois são manipulados e montados para sua apresentação. O mesmo acontece com a música eletrônica, com a diferença de os sons pré-gravados, nesse caso, serem produzidos por instrumentos eletrônicos, como o sintetizador (Fonte: Dicionário de Música ZAHAR, 1982: verbetes música concreta e música eletrônica).
Ainda que possa causar espécie a alguns, o fato é que qualquer objeto, desde um pedaço de pau até o mais sofisticado aparelho que, de qualquer forma, produza sons que possam ser caracterizados como música, é um instrumento musical. Neste particular, nunca é demais lembrar certos músicos internacionalmente reconhecidos, como Hermeto Paschoal, Nana Vasconcelos, Uakti -- citando apenas alguns brasileiros -, que produzem música a partir dos mais inusitados objetos, como ossadas, utensílios domésticos, vasos de cerâmica, tubos plásticos etc.
É bem verdade que, ainda, muitos músicos bem formados rejeitam a atividade do DJ como sendo igual a de um músico -- apesar de muitos DJ’s possuírem sólida formação musical -- assim como, durante muito tempo, certa categoria de músicos, como os percussionistas, foi encarada por muitos de seus pares como “menor”, como o “pessoal da cozinha”. Poder-se-ia também dizer que o DJ sem formação musical não poderia ser considerado um músico, nem o toca-discos um instrumento, já que aquele seria incapaz de fazer música por qualquer meio se o seu aparelho fosse desligado da tomada.
Em contraposição -- como noticiou a imprensa especializada no assunto -- a França foi o primeiro país a reconhecer oficialmente a atividade, através de seu sistema governamental de comunicações e radiodifusão e, em 1999, a Comissão Canadense de Rádio-Televisão e Telecomunicações determinou que o turntablismo constitui um “gênero musical distinto”, na medida em que a música tenha sido resultado de uma criação realmente nova, a partir de uma significante alteração da gravação originalmente havida em suporte vinyl.
Ainda é digno de nota a realização do “Concerto For Turntable” (www.concertoforturntable.com ) obra dos DJ’s Radar e Raul Yanez, composto para turntable e orquestra sinfônica., com três movimentos, e apresentado ao público em março de 2001 pelo DJ Radar e seu turntable, com regência do maestro Joel Brown à frente da orquestra sinfônica da Universidade do Estado do Arizona, EUA. Hoje em dia é comum a presença de DJ’s como músicos acompanhantes, componentes de inúmeras bandas e artistas em atividade.
O toca-discos, em sua função passiva de mero reprodutor de sons, é apenas um aparelho. Quando é manipulado pelo DJ e com isto produzindo novos sons, resultado da alteração dos sons originalmente gravados, torna-se um instrumento. É dessa forma que se torna possível ver o DJ como um músico, logo como um intérprete ou executante musical, com todos os direitos ínsitos a esta categoria, previstos em lei, especialmente o direito de receber pela execução pública de suas interpretações, onde couber, nos termos da Lei n° 9.610/98 -- se e quando tais interpretações não firam os direitos de intérpretes (e produtores fonográficos) e eventualmente de autores, de fixações fonográficas manipuladas pelo DJ.
O DJ como autor musical
Para a consideração de um DJ poder ser tido como um autor, em sentido estrito, existe uma regra ainda em discussão: a de que a manipulação de uma gravação pré-existente resulte em que esta se torne totalmente irreconhecível da obra original sobre a qual se processou a sua intervenção. Esta regra, quase uma premissa, está na base da própria aceitação da obra resultante como uma criação original. Caso contrário, estaremos diante de um claro aproveitamento de obra anterior, identificável, sobre a qual o DJ terá exercido uma atividade de modificação, relacionada com o direito moral de seu autor e do intérprete (artigos 24 e 92 da LDA), e uma atividade de transformação da obra, relacionada com o direito patrimonial de autor/intérprete e do próprio produtor fonográfico (artigos 29, 89 e 93 da LDA).
As intervenções do DJ afetam a gravação e a própria obra gravada. A manipulação de uma fixação fonográfica -- em outras palavras, sobre a interpretação original de um outro artista -- pode ocorrer sobre a harmonia e a melodia da obra musical, que, por sua vez, têm como tributários o ritmo, o timbre, o estilo, o diapasão, o volume, enfim, todas as partes que constituem a gravação sonora. A fragmentação dos sons de uma gravação, o seu re-arranjo etc., operado pela manipulação por um DJ em seu processo de composição pode, ou não, permitir que a obra e a gravação original sejam identificáveis.
A exemplo do que ocorre com o sampleamento sonoro, grosso modo, estamos falando de uma replicação de sons previamente armazenados. Esse armazenamento prévio de sons permitem a recriação de escalas baseada em notas ou escalas de uma gravação original – considerada a “matriz genética” da obra resultante (C.P. Spurgeon, “Sampleamento Digital’, CISAC, 1992).
A intervenção do DJ, do mesmo modo, pode ser resultado de uma replicação. Resta saber se esse tipo de aproveitamento, assim como no sampleamento sonoro puro e simples, pode ser considerado ilícito quando se observa apenas partes da obra, já quase inidentificáveis, às vezes algumas notas musicais ou algumas palavras. Isto remete-nos, segundo o articulista citado, à necessidade de identificação de uma “semelhança substancial”, verificável através de critérios quantitativos e critérios qualitativos, na verdade, matéria de prova.
Conclusão
Os aspectos acima abordados, de modo superficial, o foram como uma tentativa de situar o fenômeno no campo jurídico. Estamos ainda diante de uma questão em aberto. A atividade do DJ e sua caracterização como intérprete e/ou como autor musical, está a merecer um aprofundamento, exigindo-se a sua confrontação com o próprio sentido de autoria e interpretação (ou execução), bem como com o princípio do fair use.
Disse o diretor da Scratch DJ Academy, Rob Príncipe, que é hora dessa nova forma de arte ter o mesmo tipo de respeito e legitimação que o jazz e o rock conseguiram. Esta é uma afirmação que, com a presença e a importância concomitantes dos DJ’s na música popular, constitui algo que não pode ser ignorado, e que deve ser tratado como um novo objeto de estudos para o Direito autoral.
Revista Consultor Jurídico, 23 de julho de 2004

Propriedade intelectual

Não há conflito entre novas tecnologias e direito autoral
por Glória Braga - Superintendente do ECAD
O direito de execução pública em face das novas tecnologias, como ringtones e Internet é um tema que assume relevante curiosidade em razão de um propagado conflito entre a evolução tecnológica, os direitos dos criadores intelectuais e a legislação autoral. Muito se tem discutido sobre isso. No meu sentir, entretanto, antes de tudo, existe, sim, um novo mundo, novos modelos de negócios, novos players, novas possibilidades de utilização de obras criativas. Nesse novo mundo, há lugar para todos. Sem aparentes conflitos. É disso, que vamos tratar.
A história da humanidade é marcada pelo descompasso entre a evolução social e a proteção legislativa. As leis caminham sempre atrás dos fatos e das mudanças ocorridas nas mais diversas sociedades do globo terrestre.
A história evolutiva do Direito Autoral está relacionada à possibilidade de se copiar obras literárias em grande escala e, conseqüentemente, de se proteger aqueles que viabilizavam as cópias (os editores) e aqueles que criavam as obras (seus autores). Desde então, muita coisa mudou.
O que não se pode perder de vista é que as obras intelectuais são protegidas pelas legislações do mundo como bens integrantes do patrimônio privado de seus criadores. Os autores exercem esses direitos de forma exclusiva, durante o prazo de proteção de suas criações, não podendo essas criações ser utilizadas sem autorização, salvo poucas exceções contempladas na legislação autoral.
Como poderão, então, conviver no mundo pós-moderno, criadores intelectuais e os cidadãos em geral sedentos de acesso aos bens intelectuais? Como sempre conviveram, respeitando regras criadas para disciplinar a utilização de obras protegidas, desde que essas mesmas regras não inviabilizem a difusão da cultura. As leis de direitos autorais são elaboradas com essa finalidade. Não há que se imaginar que um ramo do Direito, que tem sua fonte de inspiração em tratados internacionais e em acordos multinacionais de comércio, não esteja voltado ao equilíbrio desses dois direitos e interesses: dos autores e dos cidadãos.
Assim sendo, não há dicotomia entre as necessidades do avanço da tecnologia (e a conseqüente facilidade de disponibilização de obras criativas para um número quase infinito de usuários) e os direitos garantidos aos criadores, sem os quais, é bom que sempre se repita, não haveria obras criativas a serem disponibilizadas. Não podemos deixar que se instale um verdadeiro contra-senso. Os interesses de usuários de bens intelectuais não devem ser maiores que os direitos dos criadores. Por outro lado, não há como se imaginar que um novo modelo de negócio a ser implantado, num mundo globalizado, que conta com diferentes legislações, e no qual a rápida difusão das criações intelectuais é uma realidade, impossibilite essa difusão.
As possibilidades cada vez mais crescentes de utilização das obras criativas, dentre elas as músicas, objeto principal desta palestra, interessa e muito aos titulares de direito.
Com o passar dos séculos, graças a essas novas modalidades de uso, a música deixou de ser um privilégio dos poucos que compareciam às audições públicas e ao vivo das sinfonias de Mozart, Bach ou Schubert. O rádio, a televisão, o cinema, a gravação fonográfica e todas as novas formas de reprodução e difusão de músicas trouxeram para os compositores, músicos e cantores inúmeras alternativas para a difusão de suas criações. Por esta razão, não há que se falar em conflito entre os usos levados a efeito pela internet ou mesmo nos ringtones, truetones ou realtones e os direitos dos autores, pois nada mais são do que novas mídias e novas possibilidades de uso, tal qual um dia foram o rádio, a tv etc. O que há de se perseguir é, sim, a convivência lícita e possível entre, de um lado, os criadores e, de outro, todos aqueles que pretendam de uma forma ou de outra ter acesso a essas criações.
A Lei Autoral Brasileira
A lei autoral brasileira é uma das mais modernas do mundo. Foi promulgada sob a égide do TRIPS – Acordo sobre Aspectos do Direito da Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, acordo multilateral firmado pelo Brasil, no âmbito da OMC – Organização Mundial do Comércio. Por essa razão, insere no ordenamento jurídico pátrio conceitos mundialmente aceitos e que norteiam várias legislações nacionais sobre direitos autorais.
Como toda lei autoral, a lei brasileira não fala especificamente em mídias e, fatalmente, na internet, mas traça as diretrizes básicas e traz conceitos fundamentais para a identificação das diversas modalidades de utilização de obras intelectuais no mundo tecnológico atual. Dessa forma, se faz necessário extrair da lei autoral o princípio básico norteador da utilização de obras criativas (no caso presente, da música) e também listar as definições para alguns tipos de utilização musical possíveis quer no mundo analógico quer no digital.
Reza o artigo 28 da Lei de Direito Autoral (LDA) brasileira: “Cabe ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor de obra literária, artística ou científica”. Com base nesse dispositivo, que praticamente reproduz o inciso XXVII, do artigo 5o da Constituição Federal brasileira, o artigo 29 da LDA disciplina “Depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como:..” passando a listar de forma exemplificativa as inúmeras possibilidades de utilizações de obras criativas. Está identificado nesses dispositivos legais o princípio fundamental da legislação autoral, não apenas brasileira, mas de inúmeros países do mundo, razão pela qual se pode facilmente concluir que a utilização de bens intelectuais depende necessariamente de autorização prévia e expressa de seus autores ou de quem os represente. O legislador passa, então, a listar as modalidades de utilização de obras e, conseqüentemente, estão aí os direitos de natureza patrimonial dos criadores intelectuais.
O mais antigo deles, o direito de reprodução, encontra-se assim definido no artigo 5, inciso VI, da LDA: “reprodução – a cópia de um ou vários exemplares de uma obra literária, artística ou científica ou de um fonograma, de qualquer forma tangível, incluindo qualquer armazenamento permanente ou temporário por meios eletrônicos ou qualquer outro meio de fixação que venha a ser desenvolvido” .
A seu turno, o antigo direito de distribuição (cujo conceito foi importado do Marketing para identificar o direito que têm os autores de decidirem sobre a colocação em pontos de vendas de suas obras ou de cópias delas), na atual lei autoral, ganhou sua vertente tecnológica, a partir do momento em que a antiga distribuição de cópias físicas em pontos de venda se adaptou à nova realidade virtual. Segundo a lei autoral, em seu artigo 5, inciso IV, considera-se distribuição “a colocação à disposição do público de original ou cópia de obras literárias, artísticas ou científicas, interpretações ou execuções fixadas e fonogramas, mediante a venda, locação ou qualquer outra forma de transferência de propriedade ou posse”. Mais adiante, o artigo 29 inciso VII da mesma LDA também trata especificamente da chamada distribuição digital, definindo-a como “a distribuição para oferta de obras ou produções mediante cabo, fibra ótica, satélite, ondas ou qualquer outro sistema que permita ao usuário realizar a seleção da obra ou produção para percebê-la em um tempo e lugar previamente determinados por quem formula a demanda, e nos caos em que o acesso às obras ou produções se faça por qualquer sistema que importe em pagamento pelo usuário.”
Por outro lado, alvo deste estudo, o direito de comunicação ao público vem disciplinado no artigo 5, inciso V, como o “ato mediante o qual a obra é colocada ao alcance do público, por qualquer meio ou procedimento que não consista na distribuição de exemplares” e a execução pública musical (artigo 68 parágrafo 2) como “a utilização de composições musicais ou lítero-musicais, mediante a participação de artistas, remunerados ou não, ou a utilização de fonogramas e obras audiovisuais, em locais de freqüência coletiva, por quaisquer processos, inclusive a radiodifusão ou transmissão por qualquer modalidade, e a exibição cinematográfica”. Assim, os conceitos de comunicação pública e de execução pública musical apresentam, com a nova lei autoral já adaptada à realidade digital, uma peculiar abrangência, que mais os assemelha à efetiva disponibilidade da obra musical para o usuário. E assim não poderia deixar de ser. As mais variadas formas de utilização ganharam, ante as novas tecnologias, possibilidades múltiplas todas voltadas para a disponibilização de obras musicais a um público existente não mais em um único lugar ou país, mas em todo o planeta.
Dessa forma, assume crucial importância para se entender o direito de execução pública no mundo digital, a compreensão do amplo conceito de transmissão existente na lei. Diz o legislador, no artigo 5 inciso II da LDA que transmissão ou emissão é “a difusão de sons ou de sons e imagens, por meio de ondas radioelétricas; sinais de satélite; fio, cabo ou outro condutor; meios óticos ou qualquer outro processo eletromagnético”.
Ora, fazendo a análise de todos os conceitos até aqui trazidos, pode-se concluir com facilidade que, por meio das mais variadas formas de transmissão, as obras musicais serão comunicadas ao público, ou seja, executadas publicamente. Quando o legislador pátrio manteve ligado à execução pública o conceito de transmissão já antevia que, no mundo digital, infinitas modalidades de transmissão seriam realidade, e que um dos conteúdos possíveis dessas transmissões seriam os bens intelectuais e, no presente caso, a música.
O aparente conflito
Quando uma música é utilizada em um site na Internet ou mesmo se transforma num ringtone, truetone ou realtone (modalidades de toques musicais difundidos por aparelhos de telefonia móvel), que tipos de utilização musical estarão acontecendo?
Poderão os conceitos dos mais variados direitos patrimoniais dos autores, anteriormente listados, ser suficientes para proteger o uso desses bens intelectuais no mundo digital? Que direitos possuem os compositores musicais e demais titulares sobre suas canções quando elas são utilizadas na Internet ou disponibilizadas no aparelho celular?
Valendo-se dos conceitos já mencionadas, se pode identificar alguns momentos distintos nessas utilizações e, conseqüentemente, direitos também distintos que devem ser preservados. Para tanto, não há se esquecer, em hipótese alguma, o que disciplina o artigo 31 da LDA, a saber: “as diversas modalidades de utilização de obras literárias, artísticas ou científicas ou de fonogramas são independentes entre si, e a autorização concedida pelo autor, ou pelo produtor, respectivamente, não se estende a quaisquer das demais.”
Assim, em geral, as utilizações de músicas na internet ou em outras mídias digitais necessitam de mais de uma autorização dos respectivos titulares de direito, pelo fato de serem verificadas várias modalidades de utilização e, conseqüentemente, de existirem vários direitos necessitando de regularização.
Música na Internet e a execução pública
O que precede qualquer utilização musical no mundo digital é a possível transformação ou adaptação da obra musical ou de seu respectivo fonograma para essa nova mídia. O que será utilizado será um fonograma previamente gravado ou a música precisará ser fixada especialmente?
Muitos compositores, por exemplo, entendem que suas canções se descaracterizam mesmo no caso dos realtones, ou ringtones polifônicos e, por essa razão, não concedem a necessária outorga para que o ringtone seja produzido. Portanto, sempre se deve ter em mente que, caso a música em seu estado original venha a ser utilizada ou mesmo adaptada para a utilização em internet ou em qualquer outra mídia digital, seus compositores e demais titulares de direito devem autorizar esse uso. Caso seja utilizado um fonograma, não apenas os compositores e demais titulares devem outorgar suas autorizações, mas também o produtor daquele fonograma.
Vencida essa etapa, há de se identificar a real utilização da música.
A música pode ser disponibilizada em um site na Internet com várias finalidades. Ela pode servir, por exemplo, como música de fundo no site; ela pode ser vendida, por meio desse site; ela pode ser ouvida, parcial ou integralmente, para efeito ou não de venda; ela pode servir para a montagem da chamadas “rádios virtuais”. Enfim, essas utilizações afetam quais direitos? Reprodução, distribuição, execução pública, todos eles ou alguns deles?
Quando anteriormente se tratou do direito de execução pública musical, ficou muito evidente que a comunicação de músicas ao público pode ocorrer de diversas formas: ao vivo, mediante radiodifusão, exibição cinematográfica ou transmissão por qualquer modalidade. Na internet ou em qualquer meio digital, qualquer utilização de música, independente de sua finalidade (venda de músicas, rádios virtuais etc.), se dá por meio de transmissões. Aí está presente o direito de execução pública musical. E nesse caso, não se diga, que a música necessariamente precise ser ouvida, mas ela precisa apenas ser o conteúdo dessas transmissões.
Ora, façamos uma correlação com o que ocorre com a radiodifusão: quando uma emissora de rádio transmite sua programação, e lá estão inseridas composições musicais, a emissora é responsável por obter a necessária autorização dos titulares de direitos sobre essas criações para radiodifundí-las. O mesmo ocorre com aquele que transmite obras musicais via Internet.
Não se pode, entretanto, descaracterizar o direito em razão das diferentes utilizações das músicas nas páginas de internet após suas transmissões. Essas diferenças serão mais bem tratadas não no momento da autorização para a comunicação ao público, mas sim, no momento do pagamento dos direitos autorais correspondentes. Isso porque é evidente que uma música que serve de fundo musical numa página de internet pode não ter a mesma importância de músicas disponibilizadas para a montagem de rádios virtuais. Assim, esses fatores serão levados em consideração no momento da fixação da retribuição autoral devida pelos responsáveis pelas transmissões.
Internet, ringtones e demais direitos patrimoniais
O fato de estar caracterizado o direito de execução pública musical nas utilizações digitais não significa que os outros direitos patrimoniais anteriormente indicados também não estejam presentes.
É evidente que, num site destinado a autorizar downloads de músicas, são preponderantes os direitos de reprodução e distribuição. O download é a evolução da antiga reprodução em LP ou CD. E o site ou, nesse caso, a loja virtual, a evolução da loja de CDs. Mas isso não descaracteriza o direito de comunicação pública e vice-versa.
Assim, podemos afirmar que a internet fez com que, pelo menos aparentemente, em um mesmo lugar ou num mesmo momento, vários tipos de utilização musical ocorressem, gerando ali vários direitos patrimoniais para os titulares dessas canções. Enquanto no passado, os momentos eram distintos e facilmente perceptíveis, hoje, na internet, os momentos continuam sendo distintos, mas existe certa dificuldade em se identificar cada um deles. Por exemplo: no passado, a música era gravada em um CD, esse CD era comprado pela emissora de rádio, a rádio fazia a radiodifusão dessa música e alguém a recebia em casa. Hoje, as músicas podem não ser mais gravadas em CD, pois ficam armazenadas no banco de dados de computadores ou servidores, e são baixadas diretamente para outros computadores. Nesse momento, se pode estar comprando a música ou apenas a escutando, mas a transmissão existiu. Por outro lado, hoje, os ringtones são armazenados em servidores e transmitidos para os aparelhos celulares. A impossibilidade de se visualizar a cópia física da música ajuda a se confundir os momentos e os direitos existentes.
Porém, por mais que os momentos sejam confundíveis numa primeira avaliação, estão aí presentes utilizações distintas, necessitando de autorizações específicas. Portanto, não há que se afirmar que as utilizações musicais na internet ou por meio de novas tecnologias não se encontram devidamente amparadas e previstas na legislação em vigor. O que tem ocorrido é uma confusão dos conceitos já existentes em razão da difícil identificação das utilizações que ocorrem quase que simultaneamente e no mesmo lugar, mas isso, repita-se, não descaracteriza os direitos consagrados.
As autorizações e a cobrança de direitos autorais
O que fazer para obter várias autorizações de uso de músicas? Recorrer aos titulares de direitos e junto a eles obter essas autorizações, na maioria das vezes, a partir do pagamento de direitos autorais.
Isso vem ocorrendo, sem maiores problemas, em lugares do mundo nos quais a gestão dos diversos direitos patrimoniais sobre as músicas é unificada. Explique-se melhor: se num site de venda de músicas ou mesmo na compra de um ringtone podemos identificar a reprodução musical (cópia), sua conseqüente distribuição digital, e perceber que isso tudo ocorre graças a uma transmissão, é evidente que vários direitos dos criadores dessas canções estão sendo utilizados. Quem dará essas autorizações?
Em vários países do mundo, nos quais os direitos de reprodução (cópia) e de execução pública musical são geridos em conjunto, quer diretamente pelos criadores, quer por suas associações de gestão coletiva, é fornecida uma autorização para ambas as formas de utilização e internamente os valores são creditados aos direitos de reprodução ( mechanical rights) e de execução pública ( performing rights). Existem estudos da CISAC – Confederação Internacional das Sociedades de Autores e Compositores – www.cisac.org - que sinalizam nesse sentido.
No Brasil, entretanto, essa gestão é partilhada. O direito de execução pública musical é gerido por meio das associações de gestão coletiva, representadas pelo ECAD – Escritório Central de Arrecadação e Distribuição. Os demais direitos, dentre eles os de reprodução e distribuição digital são administrados diretamente pelos compositores ou por suas editoras musicais e gravadoras. Nesse caso, as autorizações serão outorgadas por entidades distintas, cada uma autorizando os direitos que estão sob sua tutela.
Conclusão
A gestão dos bens intelectuais não difere da gestão dos bens materiais. Ela obedece a regras até muito pouco tempo quase desconhecidas para a maior parte da sociedade. Esse desconhecimento gerou forte impacto ante a revolução trazida pelas novas tecnologias e pela internet, as quais expuseram à discussão com maior veemência os direitos dos criadores e as necessidades de acesso às criações pela sociedade.
Vivemos um momento de acomodação dessa nova realidade. Portanto, é razoável que se verifique certa perplexidade, que sob hipótese alguma pode ser resolvida por uma insurreição generalizada contra conceitos legais há muito pertencentes ao ordenamento jurídico.
Não há que se falar também na dificuldade de controle das diversas utilizações musicais na internet como motivo para impedir a manutenção e cobrança de direitos autorais, flexibilizando-os em detrimento dos interesses dos criadores intelectuais. Novas alternativas tecnológicas já vêm sendo desenvolvidas no âmbito da comunidade mundial de autores musicais, com o intuito de facilitar a utilização de suas criações e a conseqüente regularização dos direitos. O DRM (Digital Rights Management), sistema de gerenciamento de direitos no mundo digital, já implementado para casos de reprodução de músicas e de obras audiovisuais vem alcançando resultados iniciais satisfatórios. No ano de 2004, por outro lado, registrou-se a diminuição dos downloads ilegais de música nos Estados Unidos, ante a proliferação de sites de venda de música legalizada. A já mencionada CISAC desenvolve um projeto mundial de codificação de músicas, livros, obras audiovisuais, titulares de direitos, fonogramas etc. que facilitará, no futuro, a identificação de títulos, titulares e administradores dos direitos autorais. O Brasil participa deste projeto por meio do ECAD (BrasilEcadNet).
Enfim, o mundo da música também pode ser administrado tecnologicamente. E para que esse mundo continue produzindo novas canções, os conceitos básicos e fundamentais dos direitos dos criadores devem ser preservados, não apenas no interesse desses criadores, mas também daqueles que pretendam continuar tendo acesso, licitamente, aos mais variados gêneros musicais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Scorzalli, Patrícia A Comunidade Cibernética e o Direito, Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 1997.
Silveira, Newton A Propriedade Intelectual e as Novas Leis de Direitos Autorais, São Paulo: Ed. Saraiva, 1998.
Revista Consultor Jurídico, 5 de julho de 20